Decorrente do inchaço populacional das cidades no Brasil, o processo de urbanização territorial tem causado não apenas pressão sobre a oferta dos serviços de utilidade pública para seus moradores – privando-os do direito ímpar à cidadania –, como os têm induzido a montar bases em áreas ilegais e zonas de risco mais afastadas das imediações dos centros urbanos. Esse post trata das evidências da expansão das periferias intra-urbanas localizadas nas regiões metropolitanas do território brasileiro, causadas por um processo de "urbanização difusa", e representadas pelo crescimento demográfico desordenado da população pobre que vive em condições de extrema vulnerabilidade social nas chamadas "manchas urbanas", estas, por sua vez, formadas nos limites de transição rural-urbano existentes nas grandes e, mas recentemente, também nas médias cidades do Brasil.
A realidade da urbanização do país se encontra em posição intermediária quando comparada à dos países da Europa e América do Norte, de um lado, e da situação da Ásia e África, do outro. Em 1950, o Brasil já ostentava o índice de urbanização de 36%, ponto em que os países asiáticos e africanos somente alcançaram no ano 2000. Pelo censo de 2010, a população urbana brasileira atingiu 84%, porcentagem superior a muitos países da Europa ocidental e também dos EUA, cuja média no mesmo período foi de 79% e 82%, respectivamente (Tabela no. 1).
Tabela no. 1 – População total e urbana em países e regiões selecionados (1950-2010)
Fonte: IBGE-SIDRA. Censo Demográfico (vários anos); UN DESA (on line)/ Elaboração do autor.
Durante a etapa intensa da urbanização, entre as décadas de 1960 e 1980, milhões de "retirantes" socialmente segregados migravam das periferias nacionais em ritmo frenético e contribuíam com o aumento da concentração populacional urbana, sobretudo nas regiões metropolitanas, ao redor das quais surgiam inúmeras novas cidades. Tomando o exemplo do estado de São Paulo, o saldo de entradas e saídas de pessoas nesse estado passou de 1,6 milhão em 1970 para cerca de 4,4 milhões em 1980, com destaque à chegada de nordestinos e mineiros ao estado (Tabela no. 2). Apesar dos dados apresentarem elevação do estoque do fluxo de pessoas também em 1991 (5,3 milhões), verifica-se que o aumento apenas na década encerrada em 1980 (2,8 milhões de pessoas) foi muito maior do que no da década seguinte, encerrada em 1991 (913 mil pessoas).
Tabela no. 2 – Movimento migratório inter-regional (a): saldo do fluxo acumulado de entradas e saídas em relação ao estado de São Paulo (1940-1995)
Fonte: CANO, 2007, p. 368-74; baseado em (dados brutos): IBGE. Censos Demográfico (vários anos)/ Elaboração do autor.
(a) Conceito: local de nascimento e residência
*Norte: inclui TO a partir de 1980.
** Representa o total de Piauí à Bahia
*** Inclui Guanabara (GB) até 1970.
As "cidades dormitório", como são chamadas, formam verdadeiros "sistemas urbanos" ligados às áreas metropolitanas nacionais para o centro das quais todos os dias a população pobre se desloca para trabalhar. É comum àqueles que vivem ou trabalham na cidade de São Paulo conviver diariamente com a figura de porteiros, empregados domésticos, faxineiros, copeiros, pedreiros, jardineiros, entre muitos outros que se deslocam diariamente, em condições inapropriadas, para trabalhar compulsoriamente nas áreas centrais da cidade.
A situação modificou-se durante as décadas de 1990 e 2000, período em que se observou a inversão do fluxo migratório comparativamente aos anos anteriores. Seria um erro acreditar, contudo, que o declínio dos fluxos migratórios inter-regionais significasse diminuição da pressão urbana sobre as cidades e seus habitantes. A diferença é que, enquanto outrora o maior fator impulsionador da expansão urbana era a migração do campo para as cidades, agora o elemento responsável é o crescimento vegetativo da população dentro das próprias cidades. Somente entre os anos 1980 e 2010 a população urbana dobrou de tamanho, passando dos cerca de 80 milhões para 160 milhões de pessoas e representando 64% e 84% da população total do país, respectivamente (Tabela no. 1).
Embora declinante o fluxo migratório intra-regional nos últimos anos, o próprio crescimento vegetativo já é suficiente para fazer com que as novas gerações sintam, por inércia e tempo indeterminado, conforme revelou a teoria da "causação circular e acumulativa" de Myrdal, os efeitos perversos do processo de acumulação e divisão social do trabalho que têm sido adotados no Brasil.
O fato é que o saldo da expansão urbana apresentou contradições e desigualdades econômicas sobre a estrutura social com reflexos espaciais expressos na terrível realidade de cidades cada vez mais inóspitas em termos de moradias, infraestrutura e serviços de utilidade pública insuficientes. De acordo com o Censo Demográfico de 2010, atualmente mais de 11,4 milhões de brasileiros, provavelmente sem instrução e perspectivas, vivem ou sobrevivem em aglomerados subnormais, metade dos quais no Rio de Janeiro, São Paulo e Pará. Sem acesso a terra, essas populações vivem em habitações precárias e de alto risco, em condições de insegurança da posse imobiliária, em bairros primitivos, violentos e fora de padrões mínimos de saneamento e de mobilidade pessoal em declínio, que as obriga viajar horas para chegar aos locais de trabalho.
Em São Paulo, mais de dois milhões de pessoas habitam zonas de proteção ambiental, sobretudo mananciais e Mata Atlântica, margens de represas e de rios e cifra superior a cem mil vive em áreas de alto risco. Os terrenos de periferia ou favelas existentes são mercados de violência, ocasionando, direta ou indiretamente, crimes atrozes pela posse da terra. As áreas centrais ficam, em contrapartida, cada vez mais valorizadas e restritas ao usufruto de minorias de maior renda e poder, e evidenciam a desigualdade sócio-espacial predominante do processo de concentração do capital e manutenção dos baixos salários no país.
Tal padrão de urbanização se repete sem grandes alterações. De um lado os investimentos em infraestrutura concentrados nos centros urbanos, altamente desenvolvidos e ocupados pelo topo da sociedade, como nos bairros jardins, que foram planejados pela antiga companhia City, em São Paulo, ou as residências no Lago Sul de Brasília. O outro é o que provoca o deslocamento dos segmentos mais pobres a condições urbanas precárias e distantes das áreas em que há especulação fundiária, o das "periferias urbanas", como as regiões de Franco da Rocha e Perus, na Região Metropolitana de São Paulo, ou Jacarezinho e Morro do Alemão, no Rio de janeiro, além de muitas outras, que estão abandonadas, esquecidas sob a forma de favelas e cortiços nas cidades dos mais variados portes espalhadas pelo país.
Quanto à expansão da classe C, às avessas, engana-se quem acreditar ser repleta a melhoria das condições de vida da população de baixa renda nas grandes cidades, como "vende" à sociedade alguns dos principais meios de comunicação no país, através de mensagens fictícias e fantasiosas que são transmitidas durante a sua programação na TV.
Na matéria intitulada "
De repente, classe C", publicada em 15/07/2012 no Jornal Folha de São Paulo, o estudante de letras da Universidade de São Paulo, Leandro Machado, de 23 anos, morador do município Ferraz de Vasconcelos, na zona leste da Região Metropolitana de São Paulo, relata as dificuldade que a "nova classe média" urbana permanece a enfrentar no dia-a-dia. "Eu e minha nova classe média somos as celebridades do momento (...) Há empresas, publicações, planos de marketing e institutos de pesquisa dedicados a investigar as minhas preferências (...) as telenovelas agora têm empregadas domésticas como protagonistas, cabeleireiras como musas e até personagens ricos que moram em bairros mais ou menos como o meu. A diferença é que nesses bairros, os da novela, não há ônibus que demoram duas horas para passar nem buracos na rua (...) levo 2h30 para chegar ao trabalho porque o trem quebra todos os dias, meu plano de saúde não cobre minha doença no intestino e morro de medo das enchentes do bairro. Ou seja, ao mesmo tempo que todos querem me atingir por meu razoável poder de consumo, passo por perrengues do século passado. Eu e mais 30 milhões de pessoas – não somos pobres, mas da classe C".
Com o passar do tempo a experiência urbana parece ter melhorado as formas de organização nas cidades. Contudo, como mencionou Vilmar Faria (1988) a respeito das fragilidades dos moradores das periferias, isso "não diminuiu o peso do desenraizamento, de ausência, de ligações de solidariedade mais profundas, da solidão, do preconceito e do anonimato" nas cidades. As distorções continuam enormes, e a vulnerabilidade crescente nas periferias urbanas. O fato é que as políticas habitacionais nas áreas mais distantes e sem infraestrutura levam à armadilha da valorização nas áreas intermediárias, o que afasta a população que recebe mais baixos salários para locais ainda mais longínquos e inóspitos tornando as desigualdades sócio-regionais ainda mais perversas e exclusivas.