Berço do liberalismo econômico e
das primeiras Revoluções Industriais, o Reino Unido surpreende ao deixar de
seguir sua própria cartilha, que recomenda medidas como desregulamentação de
capitais e livre mercado para intercâmbio de mercadorias. Em meio a um quadro de
envelhecimento populacional, o pior dessa decisão é que sua saída da União Europeia é um
passo para a estagnação econômica na região.
Da Revolução
Industrial inglesa à perda da hegemonia mundial
Elegante mas atrasada, a economia
do Reino Unido já alcançara o posto de principal potência econômica mundial entre
o final do século XVIII e a primeira metade do século XX, posição então perdida
à norte-americana no pós-II Guerra Mundial, quando o Dólar passou à condição de
seignorage, tornando-se padrão
monetário internacional.
Rica, poderosa e com notável marinha mercante, a Inglaterra contava no
século XVIII com uma trajetória de duzentos anos de contínuo desenvolvimento
econômico. Internamente, tal condição precedia da consolidação de uma sólida
oligarquia liberal de base burguesa, de um lado e, de uma massa de camponeses
proletários, de outro, que serviam às atividades manufatureiras de pequenos
proprietários rurais. Externamente, sua soberania foi fruto, fundamentalmente,
da hegemonia comercial exercida sobre a "economia européia", pela
conquista das suas colônias fornecedoras de matérias-primas na América, além da
dominação de pontos comerciais no Oriente, que garantia "expandir novos
mercados, senão criá-los".
O processo de industrialização inglesa caracterizou-se pela produção em
pequena escala de artefatos têxteis, além de outros bens de consumo não
duráveis, como alimentos e bebidas, produzidos por glebas familiares de
pequenas, porém hábeis manufaturas, que expandiam seus investimentos por
adições sucessivas baseada no aumento em vendas. Ao passo que as vendas e o
lucro aumentavam, novos dispositivos eram incorporados e, embora simples aos
padrões da época, eles permitiam que cada vez menos tecelões fossem necessários
para operar os teares mecânicos, muito mais produtivos que suas antigas rocas
de fiar.
Foi entre os anos 1840-1895, contudo, que foram reveladas drásticas
mudanças de caráter científico-tecnológico, de processos produtivos
padronizados e de escalas de produção jamais vistas na história, notadamente
nas indústrias pesada, de carvão, ferro e aço, que juntas serviram para
revolucionar os meios de comunicação e transportes utilizados na época. Com a
crescente demanda para aquisição de bens de capital advinda das outras
economias mundiais, o cenário foi propício para que os investidores ingleses
transferissem suas poupanças para financiar a ampliação da "mania
ferroviária" (1835-1847) às economias mundiais sob sua influência, por
meio do discurso neoliberal, que consistia
em demonstrar que um regime de livre troca logra o máximo de utilidade para
todas as partes.
Foi a partir da "Grande Depressão" (1873-96), contudo, que a
economia inglesa passou a perder sua hegemonia mundial para para EUA e
Alemanha, que passam a concorrer e proteger suas economias das mercadorias
britânicas. O "imperialismo" frente as colônias "formais" e
"informais" foi a forma encontrada pelos ingleses para tentar
assegurar sua soberania mundial e, a rigor, a Inglaterra utilizou sua
supremacia naval para impor e continuar a exportar seus produtos a toda parte
do mundo.
Com o novo revés sofrido após a Segunda Guerra Mundial, com a destruição
da economia inglesa e o processo de bipolarização do mundo entre EUA e a antiga
URSS, a hegemonia dessas potências foi reforçada através de políticas de
"ajuda" e reconstrução. A partir da década de 1970, com a crise da
dívida externa dos estados nacionais e o processo de internacionalização dos
bancos e empresas multinacionais em busca de mercados para reproduzir seu
capital, o ideal neoliberal regido agora pela economia norte-americana foi o
que imprimiu a nova tônica ao capitalismo.
Enfraquecido economicamente, o Reino Unido integrou a União Europeia (EU)
em 1973 aceitando, por essa razão, a sua menor autonomia como Estado Nacional,
ao passo que as políticas da UE têm por objetivo aumentar a desregulamentação
intra-fronteiriça entre seus países membros, assegurando a livre circulação de
pessoas, livre comércio de bens, serviços e capitais, além de outros assuntos
comuns ligados à políticas industriais e tecnológicas, regionais, demográficas,
entre outras.
O fim de um discurso neoliberal
Mais de quarenta anos depois do seu ingresso na EU, e já não disposta a
dar continuidade à política de livre mercado (ao que pesa a atual política migratória
e de benefícios sociais) que defendera, o Reino Unido decidiu abandonar o bloco
econômico, contrariando de vez seu discurso típico em defesa do laissez-faire.
Aliás, como já observado por Karl Polany (1980, p. 144):
“Não havia nada
de natural em relação ao laissez-faire; os mercados livres jamais
poderiam funcionar deixando apenas que as coisas seguissem o seu curso. Assim
como as manufaturas de algodão – a indústria mais importante do livre comércio
– foram criadas com a ajuda de tarifas protetoras, de exportações
subvencionadas e de subsídios indiretos dos salários, o próprio laissez-faire
foi imposto pelo estado. (...) Para o utilitarista típico, o liberalismo
econômico era um projeto social que deveria ser posto em prática para grande
felicidade do maior número de pessoas; o laissez-faire não era o método
para atingir alguma coisa, era a coisa a ser atingida”.
Dessa maneira, a ideologia neoliberal defendida sob o discurso em prol
das “boas políticas” e da “boa governança” oferece lugar para a retomada de políticas
intervencionistas, comprovando que países desenvolvidos, a exemplo da
Inglaterra, não têm sido adeptos de suas próprias recomendações. Para Ha-Joon Chang (2004, p. 32), “o
pacote de ‘boas políticas’ atualmente recomendado, que enfatiza os benefícios
do livre-comércio e de outras políticas ICT [industrial, comercial e
tecnológica] do laissez-faire, parece conflitar com a experiência
histórica. Com uma ou duas exceções (por exemplo, Holanda e Suíça), os PADs
[países atualmente desenvolvidos] não tiveram sucesso com base nesse pacote de
políticas. As que usaram para chegar ao lugar em que estão hoje – ou seja, as
políticas ICT ativistas – são precisamente aquelas que eles mandam os países em
desenvolvimento não usarem, por causa do seu efeito negativo ao desenvolvimento
econômico” (CHANG, 2004 p. 211).
Ainda considerada uma moeda forte, a Libra Esterlina responde por aproximadamente
4% das reservas cambiais globais, ante aproximadamente 60% do Dólar e 28% do Euro.
Tal fato faz com que a Libra permaneça reconhecida como padrão monetário
internacional (mesmo que não dominante), especialmente na sua região de
influência direta (EU), o que permitiu à Inglaterra não adotar o Euro como sua moeda
oficial, diferentemente dos demais países da Zona do Euro.
Apesar de alcançar maior autonomia para tomada de decisões
protecionistas de toda ordem (fiscal, cambial e monetária) que poderá adotar
para estimular sua economia, e de manter privilégios que a Libra ainda tem a
oferecer, a saída do Reino Unido da EU poderá trazer certos riscos e implicações
para a economia inglesa. A área foi o porto seguro na crise de 2008, quando o
Banco Central Europeu (BCE) inundou de liquidez os mercados financeiros (US$ 1
trilhão), provando ter capacidade de oferecer empréstimos de emergência para
economias em crise. Estar fora do grupo significa, então, correr o risco de não
obter financiamentos externos para socorrer sua economia, se necessário.
Não sendo esta uma situação deveras comum, é certo, então, qual o grande
problema? Trata-se da estagnação demográfica da região. A medida que a
população europeia envelhece ela deixa de contar com o chamado ‘bônus
demográfico”, isto é, a relação de jovens em idade economicamente ativa pela população
total, que nesta região é muito menor do que em outras partes do mundo. Este
fato leva ao risco de que não haja trabalhadores suficientes para serem
empregados nas atividades da região, pressionando futuros choques de oferta
produtiva, de custos do fator trabalho e também da previdência social. Relutante
a discutir alternativas a este problema, a estagnação demográfica no Reino
Unido pode significar, fortes indícios de uma estagnação econômica no médio
prazo na região.
Figura 1 - Estrutura etária da população européia por países selecionados
Fonte: BRASIL E EUROPA: UMA ANÁLISE
COMPARATIVA DAS ESTRUTURAS ETÁRIAS . Baseado EUROSTAT. Population
by sex and age on 1 January of each year 2007 and 2008.
Afastando-se do seu discurso, o Reino Unido é prova cabal de que as
políticas supostamente “boas” da cartilha neoliberal nada têm de benéfico seja para
os países em desenvolvimento, como para os países desenvolvidos em crise. Pelo
contrário, “na verdade é provável que as políticas ‘ruins’ lhes façam bem
quando efetivamente [e bem] implementadas” (CHANG, 2004 p. 214).
Bibliografia:
CANO, W. Notas sobre o Imperialismo Hoje. In Crítica Marxista. v.1 no. 3. São Paulo: Brasiliense, 1993.
CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em
perspectiva histórica. São Paulo: UNESP, 2004.
EICHENGREEN, Barry. Privilégio Exorbitante. Sào Paulo, 2011.
HOBSBAWM, Erick. Da Revolução Industrial Inglesa ao Imperialismo.
Forense, RJ, 1978.
POLANYI, K. A Grande Transformação. Rio de Janeiro: Campos, 1980.