Abas/ guias

9 de abr. de 2010

As facetas ocultas do tripé macroeconômico no Brasil

Breve histórico

Desde o Plano Real (1994) - segundo Delfim Neto relatou na coluna intitulada “Credibilidade é coisa séria”, no Jornal Valor Econômico em 30/03/10 - mas com preponderância a partir de 1999, o uso da política econômica brasileira apóia-se em um tripé:

“1º) política fiscal cuidadosa que, ao mesmo tempo, mantém déficits nominais em torno de 3% do PIB e superávits primários que levam à queda monotônica da relação dívida pública [dívida líquida do setor pública]/PIB (importante para a formação da taxa de juro real); 2º) política monetária que, com um Banco Central operacionalmente autônomo, busca a estabilização da taxa de inflação anual em torno de uma "meta" (hoje 4,5%); e 3º) política de câmbio flutuante com quase completa liberdade de movimento de capitais”. (Delfim Neto)

Essa continuidade da política econômica tem seus méritos por facilitar o planejamento e a tomada de decisões dos agentes econômicos, mas também tem suas limitações. Apesar dos avanços conquistados, as escolhas da política econômica adotada vêm suscitando intenso debate, principalmente devido à idéia do instável crescimento econômico – que trata como apêndices do processo decisório os eixos centrais do desenvolvimento econômico, como educação e meio ambiente, como vem admitindo Eduardo Giannetti da Fonseca (ver entrevista “Para Giannetti, discurso econômico deve focar capital humano”, no Jornal Folha de São Paulo, de 14/03/10 -, além dos efeitos colaterais provocados pelos juros elevados, a valorização da taxa de câmbio e a política pára-fiscal adotada durante o segundo mandado do presidente Lula. Soma-se a isso, como afirmou José Eli da Veiga no artigo “O impasse brasileiro”, no Jornal Valor Econômico em 16/03/2010, a necessidade de que se crie “um novo sistema tributário como parte de uma estratégia macroeconômica muito mais avançada que o atual ‘tripé’” (José Eli da Veiga).

O texto que foi elaborado com base na discussão elaborada no trabalho intitulado “Economia Brasileira: riscos e oportunidades”, de Antônio Corrêa de Lacerda, de 2006, porém, com dados atualizados para 2010.


Metas de inflação

O sistema de Metas de Inflação foi adotado no Brasil no ano 1999, logo após a introdução do regime de câmbio flutuante. A estratégia tem permitido um razoável sucesso no combate à inflação. Em contrapartida, tem suscitado uma interessante polêmica no debate econômico, especialmente quanto ao papel do COPOM - Comitê de Política Monetária do Banco Central - que periodicamente se reúne para definir a taxa básica de juros (Selic), que embora tenha sido gradualmente reduzida, ainda é considerada excessivamente elevada pelos críticos (8,75% em abril de 2010).

A Meta de Inflação é fixada a cada ano pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). A principal crítica ao sistema é que ao perseguir o cumprimento dessa meta estipulada, o COPOM acaba fixando uma taxa de juros demasiadamente elevada. O sistema tem seus méritos, por tentar coordenar as expectativas dos agentes econômicos quanto ao comportamento esperado da inflação, evitando assim, repasses de preços exagerados.

A elevação das taxas básicas de juros encarece o crédito, o financiamento e posterga decisões de investimentos, reduzindo potencialmente o nível da atividade econômica, sobretudo o PIB (Produto Interno Bruto). Adicionalmente, encarece o financiamento da dívida pública, uma vez que uma parcela expressiva dela é financiada por taxas pós-fixadas atreladas à Selic.
Um outro efeito da elevada taxa de juros é valorizar artificialmente a taxa de câmbio do Real, relativamente às demais moedas internacionais. A taxa de juros elevada no mercado doméstico acaba atraindo capital especulativo em excesso, fazendo com que a oferta, bastante superior à procura de moeda estrangeira, acabe por provocar a sua valorização do Real.


Responsabilidade fiscal

Do ponto de vista fiscal, o resultado primário das contas públicas é o obtido pela diferença entre a arrecadação do governo federal, estadual e municipal e suas respectivas empresas estatais, menos as despesas correntes, ou seja, sem levar em conta os custos financeiros (juros) sobre a dívida. Desde 1999 o Brasil vem obtendo expressivos e crescentes superávits primários, próximos a 3% do PIB. Em 2009, por conta o aumento das despesas totais correntes do governo, as desonerações com impostos e a própria queda do nível da atividade econômica, o superávit primário atingiu apenas 2,1% do PIB.

O fato é que o esforço fiscal, decorrente de uma crescente carga tributária e atrofia dos investimentos públicos, tem proporcionado uma relativa redução da relação dívida líquida do setor público/PIB (42,8% do PIB em 2009). Não se trata de uma proporção elevada, quando comparada com outros países, mas é uma dívida excessivamente concentrada no curto prazo e de elevadíssimo custo de financiamento.

No médio e longo prazos, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei de Responsabilidade Fiscal têm sinalizado uma relativa estabilidade nessa área. Esses instrumentos têm permitido um razoável grau de transparência e previsibilidade no que se refere ao comportamento das contas públicas. No entanto, a elevada carga tributária, o baixo investimento público – respectivamente de 35% do PIB e 6,1% do PIB em 2009 - e as políticas pára-fiscais adotadas no Segundo Governo Lula colocam em xeque a sustentação do quadro fiscal no longo prazo.

Do ponto de vista macroeconômico, depois dos avanços na queda da inflação e expressivo ajuste nas contas externas até 2007 – já que houve expressiva deterioração das Transações Correntes a partir de 2008 que foram compensadas, no entanto, com o expressivo volume de Investimentos Diretos Externos (IDE) no período - nos últimos anos, o desafio brasileiro se volta para o âmbito fiscal.

A carga tributária tem sido crescente. De 24,6% do PIB em 1991, subiu continuadamente, atingindo 28,5% em 1998, bateu o recorde de 37,4% em 2005 e caiu para 35% do PIB em 2009 por conta das medidas de desoneração fiscal do governo a certos setores da economia por conta da crise financeira de 2008/09. Para José Elida Veiga, somente a maior radicalização na elaboração de uma reforma fiscal possibilitaria a reforma tributária.

“Se fosse possível limitar os gastos correntes do governo a um teto que se seja metade da variação do PIB, seria possível que em oito ou dez anos houvesse folga para se realizar uma reforma tributária que partisse da carga de aproximadamente 35% do PIB para 30% do PIB. Acrescenta-se a essa ideia a necessidade da tributação dos recursos naturais, tanto para não exonerar outros setores da economia, como também criar um fundo para a renda básica cidadã” (José Elida Veiga).

A política pára-fiscal adotada no Segundo Governo Lula é outro fator de ameaça a estabilidade fiscal da economia brasileira ao permitir aportes volumosos do Tesouro ao BNDES para financiar, sobretudo os grandes grupos da sociedade. A Fazenda descobriu que se o Tesouro repassar os recursos para os bancos públicos, não há comprometimento da dívida liquida do setor público.

O diferencial de juros dos títulos que o Tesouro emite e repassa não pressiona a dívida líquida (42,8% do PIB em 2009), pois gera um passivo e um ativo que se anulam, mas eleva a dívida bruta (68,6% do PIB em 2009). Outro fator importante é o de que não há qualquer contrapartida (como metas de exportação ou crescimento de vagas de trabalho) desses aportes a esses grupos que, numa situação de quebra, farão com tais aportes sejam dados a fundo perdidos.

Segundo cálculos apresentados por Mansueto Almeida por meio da sua entrevista ao Jornal Estado de São Paulo, “Reforço do BNDES custa até R$ 14 bi ao Tesouro”, em 07/12/2009, estima-se que o custo fiscal desses aportes situem-se entre R$ 5,2 bi e R$ 13,8 bi aos cofres públicos, a partir do aporte de R$ 237,5 bi do Tesouro ao BNDES.


Transações Correntes e liberdade de capitais

Um outro ponto de destaque da economia brasileira do período 2000-2007 é o expressivo ajuste no balanço de pagamentos. Os significativos resultados, obtidos especialmente a partir de 2003, têm sido fundamentais para diminuir a vulnerabilidade externa da economia. De outro lado, uma das críticas recorrentes é a de que diante de um quadro internacional tão favorável que tem prevalecido desde então - a exceção da crise financeira de 2008/09 -, o país deveria perseguir um crescimento do PIB pelo menos equivalente a média dos principais países em desenvolvimento.

Ao proveito da expansão da liquidez internacional, a economia brasileira vem conseguindo progressos na diminuição da sua vulnerabilidade externa. O expressivo resultado da Balança Comercial que apresentou superávits desde o ano 2000 possibilitou a reversão, até 2007, dos déficits em conta corrente - de 4,3% do PIB em 1999 para superávits acima de 1% do PIB até 2007. Esse quadro voltou a se reverter em 2008 devido a nova dependência do financiamento brasileiro ao setor externo quando, então a Balança de Pagamentos voltou a enfrentar déficits em Transações Correntes acima de 1,5% do PIB, compensados, porém, pela volumosa quantia de Investimentos Diretos Externos (IDE) no Brasil, resultado da quase completa liberdade de movimento de capitais.

No entanto, a partir de 2004, e ainda com maior intensidade em 2007 e 2008, o processo de valorização contínua do Real diante das demais moedas tem representado conseqüências negativas para a estrutura produtiva brasileira. O Brasil tem incorrido no processo da sobrevalovalorização cambial, que só não repercute diretamente no saldo da balança comercial do país por conta da valorização do preço das commodities exportadas nos últimos anos.

Alguns desses efeitos já são evidentes, embora nem sempre fique claro para a opinião pública o papel do câmbio no processo. Os impactos já são notados tanto em setores tradicionais como têxteis, calçados, quanto em setores dinâmicos, como o eletroeletrônico, químico-farmacêutico e o automobilístico, para citar alguns exemplos.

Há um perverso processo de substituição da produção local por importações, deslocamento de centros de exportação para outros países e perdas potenciais de oportunidades de absorção de investimentos diretos estrangeiros. Todos esses fatores provocam desequilíbrios no valor agregado local, afetando negativamente a geração de emprego e renda.


Desafios
Além de um esforço inevitável de redução dos gastos correntes e aumento da eficácia dos serviços públicos, é fundamental ao governo criar as condições para uma efetiva redução dos juros reais na economia. Os instrumentos para isso podem ser, entre outros, o aperfeiçoamento do sistema de metas de inflação e a estrutura da dívida pública, por exemplo, diferenciando as taxas de juros de curto e longo prazos. São procedimentos bem sucedidos em várias experiências internacionais.

Apesar da expressiva melhora dos fundamentos da economia brasileira nos últimos anos, que propiciou uma redução do risco externo, os juros reais ainda continuam os mais elevados do mundo (4% a.a. em março de 2010). O Banco Central vem diminuindo gradativamente a taxa de juros básica (Selic) nominal. Mas, como as perspectivas de inflação futura são cada vez mais baixas, as taxas de juros reais (ex-ante) continuam muito elevadas, pressionando o custo de financiamento da dívida pública, entre outros efeitos adversos.

O ajuste fiscal brasileiro precisa contar com maior determinação na redução dos juros, para que o esforço de diminuição de gastos seja factível, dada a realidade brasileira. É preciso lembrar que o aumento dos gastos na área social, por exemplo, embora de fundamental importância, tem servido de amortecedor para as mazelas sociais, decorrentes do baixo crescimento econômico dos últimos anos.

O déficit nominal consolidado do setor público brasileiro inferior a 3% do PIB não é elevado para padrões internacionais. É preciso direcionar, porém, ações para diminuir a significativa carga tributária, a partir da maior radicalização de uma reforma fiscal, abrindo mais espaço para os investimentos não só com base em créditos públicos, que vem corroendo a dívida pública bruta, mas através do acesso ao crédito privado.

A valorização das commodities no mercado internacional tem levado a uma percepção equivocada no Brasil de que a valorização cambial não tem provocado estragos. Como os preços dos produtos primários exportados estão mais elevados, a receita em dólares gerada ainda permite um superávit significativo na balança comercial, distorcendo a análise. O fato é que, do ponto de vista qualitativo, estamos perdendo participação relativa nas exportações de bens sofisticados e de demanda crescente no mercado internacional. Esse espaço tem sido ocupado por outros países.

A importação barata também provoca reestruturações. As empresas percebem que é mais viável economicamente importar do que insistir em produzir localmente, com condições adversas. Isso pode ser uma saída para a empresa no curto prazo. Mas, no longo prazo, para o País, isso é péssimo, pois haverá a desarticulação de cadeias produtivas que levaram décadas para serem constituídas.

Esse quadro é agravado pela entrada agressiva de competidores chineses no mercado brasileiro e em terceiros mercados, muitas vezes concorrendo, de forma desleal, diretamente com produtores e exportadores brasileiros. É claro que isso não decorre apenas da taxa de câmbio, já que outros fatores de competitividade, como custos de produção e mão de obra, logística, impostos, etc. também são relevantes. No entanto, o que não deveríamos admitir é que a valorização exagerada da nossa moeda viesse a se transformar, como de fato vem ocorrendo, em fator adicional de acirramento de nossas desvantagens. É sempre bom lembrar que os chineses, assim como vários outros competidores utilizam a desvalorização do câmbio como fator de competitividade.

O argumento de que a política de câmbio é flutuante e que a taxa é dada pelo mercado não resiste a uma análise mais abrangente. No caso brasileiro, tendo em vista uma combinação de fatores, a tendência à apreciação do Real é muito forte: 1) o enorme diferencial entre a taxa de juros doméstica e a internacional; 2) o baixo volume de comércio exterior brasileiro proporcionalmente ao PIB; e 3) o superávit proporcionado pela valorização dos preços das commodities no mercado internacional, decorrente do aquecimento da demanda.

Há ainda quem minimize o efeito da valorização do Real argumentando, equivocadamente, que se trata de um processo internacional de valorização das moedas em relação ao dólar norte americano. Não é verdade. Proporcionalmente, o Real tem se valorizado muito mais do que as moedas dos demais países emergentes. Na prática, isso significa um encarecimento do nosso custo de produção em dólares, comparativamente a outros países, agravando os pontos aqui levantados. Algo que o Banco Central deveria evitar através do incremento de Dólares às Reservas Internacionais, pois os prejuízos provocados são relevantes, ao mesmo tempo em que os eventuais benefícios são artificiais e temporários.

Portanto, há uma agenda macroeconômica a ser trabalhada. É preciso aproveitar o momento de retomada da liquidez da economia internacional para promover os ajustes necessários. Da mesma forma, é preciso mais ousadia e precisão na condução da política do “tripé macroeconômico”, especialmente no que se refere à calibragem das políticas monetária e cambial e da rigidez e transparência da política fiscal.


Questões norteadoras

• O atual patamar da taxa de juros para contenção da inflação não incorre em redução do chamado PIB potencial?
• A política pára-fiscal adotada durante o Segundo Governo Lula compromete a queda do estoque da dívida do setor público?
• O custo fiscal da política pára-fiscal comprometo projetos de redistribuição de renda que poderiam ajudar o desenvolvimento do país?
• Qual a taxa de câmbio a ser adotada pela economia brasileira para que sua indústria obtenha competitividade não incorrendo nos processos de desindustrialização dos setores mais dinâmicos em face aos daqueles de menor capital intensivo, característicos do processo da chamada “doença holandesa”?
• Existe comprometimento dos investimentos em capital tecnológico caso o país não adote políticas cambiais competitivas? Isso poderia comprometer o investimento em capital humano e meio ambiente.

Um abraço,